Primeira loja dedicada a bonecas negras do Brasil será aberta no Rio
Durante toda a infância de Jaciana Melquiades, historiadora e
educadora negra de 35 anos, não houve sequer um momento em que ela tenha
brincado com uma boneca negra. A falta de representatividade sempre a
alarmou, mas foi o nascimento de seu filho Matias, em 2011, que lhe deu
uma ideia inovadora: fundar uma loja física inteiramente dedicada a
bonecas negras e brinquedos educativos sobre a História negra. E é isso o
que vai acontecer neste sábado, dia 16, às 10h, quando será inaugurada
no Centro do Rio de Janeiro a primeira loja do tipo da qual se tem
notícia no Brasil, a Era Uma Vez o Mundo.— Quando eu era criança,
nunca tive bonecas negras. Nenhuma amiga minha teve. No caso das poucas
pessoas que eu conheço que tiveram, eram bonecas importadas — lembra
Jaciana, que nasceu e cresceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. — A
criança cria a imagem que tem de si e do mundo a partir do brincar. Por
isso é tão importante que ela não se sinta inferior em meio a seus
brinquedos. Não
existem dados que evidenciem a existência no país de outro espaço
físico com essa proposta — o que não é tão raro de encontrar em outras
nações, como Estados Unidos. Um levantamento feito em 2018 pela
ONG Avante constatou que apenas 6,5% das bonecas fabricadas pela
indústria nacional são negras. Isso apesar de 53,6% da população
brasileira se declarar preta ou parda, segundo o IBGE. A ONG
também verificou que esse percentual se mantém estável desde 2016.
Naquele ano, uma pesquisa feita nos mesmos moldes indicou que 6,3% das
bonecas produzidas e vendidas no país, seja em lojas físicas ou on-line,
eram negras. Dandara é o carro-chefe Jaciana
criou uma loja virtual há cinco anos e, em 2017, começou a
profissionalizar o negócio. Ela destaca que a demanda para uma loja
física ficou clara nos últimos tempos: — Vejo isso como resultado de um maior entendimento sobre a História negra e o racismo. O
carro-chefe da loja pioneira é a boneca Dandara, batizada em homenagem à
mulher de Zumbi dos Palmares. Personagem importante da História do
Brasil, ela teve sua trajetória pouco estudada — marcadamente pelo fato
de ser mulher e negra. Jaciana
Melquiades confecciona as bonecas que passarão a ser vendidas em uma
pequena loja física no Centro do Rio Foto: Antonio Scorza / Agência O
GloboDandara pegou em armas pela libertação de
seu povo, e, de acordo com os poucos registros históricos, teria morrido
em 1694. Relatos dão conta de que ela teria se jogado em um abismo,
numa decisão extrema para não se entregar às forças militares que haviam
tomado o Quilombo dos Palmares, onde ela havia liderado 30 mil pessoas
homens e mulheres.— A Dandara é um nome expressivo para a
comunidade negra. Por isso a escolhemos. E ainda é ótimo porque assim
aproveitamos para ensinar as crianças sobre a História negra. Loja também para brancas e para meninos Jaciana
ressalta que a ideia da loja não é atender exclusivamente meninas
negras. Na visão dela, é fundamental que meninas brancas tenham acesso
também a bonecas de cor diferente da delas, para que valorizem desde
cedo a diversidade no mundo. Ela explica que também é importante que
meninos, como seu filho, possam usar essas bonecas e outros brinquedos
como referência. — A gente trabalha pensando na autoestima das
meninas negras, mas, para isso acontecer, é importante que os meninos,
brancos ou negros, entendam uma série de aspectos para viverem em
harmonia e igualdade — afirma ela. — Uma menina branca da periferia
consegue ver uma executiva na novela que se parece com ela de alguma
forma e, assim, sentir-se estimulada. Quem é negro tem poucas
referências, e às vezes, fica estagnado porque não recebe qualquer
incentivo ao seu redor. Resumindo: eu faço bonecas negras porque eu
preciso que a menina negra seja representada, mas também preciso que as
crianças brancas não pensem que um negro só pode ser empregado. Embora
o grande destaque da loja sejam as bonecas, serão vendidos também
outros brinquedos, significativa parte deles educativos. Jaciana chama
atenção para o conceito de livro-brinquedo: trata-se de livros de
tecido, feitos artesanalmente, com itens com os quais a criança pode
interagir. Alguns vêm com tintas para que a menina ou o menino pintem o
rosto seguindo as pinturas sugeridas pelo personagem da história. Outros
vêm com uma boneca de turbante, para que a criança aprenda sobre roupas
étnicas, por exemplo. — Alguns personagens dos livros-brinquedos
que eu crio têm os traços inspirados no meu filho. O primeiro lote que
eu abri e mostrei para o Matias foi emocionante. Os olhos dele brilharam
e ele logo perguntou "Mãe, onde eu estou?", porque o personagem
aparecia num fundo do Egito e ele queria saber que lugar era aquele —
recorda Jaciana. O projeto da loja foi possível graças ao
Instituto Ekloos, uma aceleradora fundada pela ex-executiva da Microsoft
Andréa Gomides que ajuda ONGs e empreendimentos a terem impacto social
positivo. — Atualmente, aceleramos 108 organizações semelhantes à
Era Uma Vez o Mundo, sendo 54% das iniciativas lideradas por negros e
57% por mulheres — afirma Andréa. — Ao comprar uma boneca da Era Uma Vez
o Mundo, não só estamos desenvolvendo o empreendedorismo, mas levando
bonecas negras para as casas que hoje, em sua maioria, só possuem
bonecas brancas, pois as negras só representam 7% do mercado. A
loja fica em uma galeria na Rua dos Andradas, 22, Centro do Rio. Ela
funciona de segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 10h às
14h. O preço das bonecas varia entre R$ 65 e R$ 80.
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