sábado, 2 de março de 2019

Primeira loja dedicada a bonecas negras do Brasil será aberta no Rio

 

Jaciana Melquiades defende a representatividade em todas as áreas, sobretudo quando se trata da formação infantil 
Durante toda a infância de Jaciana Melquiades, historiadora e educadora negra de 35 anos, não houve sequer um momento em que ela tenha brincado com uma boneca negra. A falta de representatividade sempre a alarmou, mas foi o nascimento de seu filho Matias, em 2011, que lhe deu uma ideia inovadora: fundar uma loja física inteiramente dedicada a bonecas negras e brinquedos educativos sobre a História negra. E é isso o que vai acontecer neste sábado, dia 16, às 10h, quando será inaugurada no Centro do Rio de Janeiro a primeira loja do tipo da qual se tem notícia no Brasil, a Era Uma Vez o Mundo.— Quando eu era criança, nunca tive bonecas negras. Nenhuma amiga minha teve. No caso das poucas pessoas que eu conheço que tiveram, eram bonecas importadas — lembra Jaciana, que nasceu e cresceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. — A criança cria a imagem que tem de si e do mundo a partir do brincar. Por isso é tão importante que ela não se sinta inferior em meio a seus brinquedos.
Não existem dados que evidenciem a existência no país de outro espaço físico com essa proposta — o que não é tão raro de encontrar em outras nações, como Estados Unidos.
Um levantamento feito em 2018 pela ONG Avante constatou que apenas 6,5% das bonecas fabricadas pela indústria nacional são negras. Isso apesar de 53,6% da população brasileira se declarar preta ou parda, segundo o IBGE.
A ONG também verificou que esse percentual se mantém estável desde 2016. Naquele ano, uma pesquisa feita nos mesmos moldes indicou que 6,3% das bonecas produzidas e vendidas no país, seja em lojas físicas ou on-line, eram negras.
Dandara é o carro-chefe
Jaciana criou uma loja virtual há cinco anos e, em 2017, começou a profissionalizar o negócio. Ela destaca que a demanda para uma loja física ficou clara nos últimos tempos:
— Vejo isso como resultado de um maior entendimento sobre a História negra e o racismo.
O carro-chefe da loja pioneira é a boneca Dandara, batizada em homenagem à mulher de Zumbi dos Palmares. Personagem importante da História do Brasil, ela teve sua trajetória pouco estudada — marcadamente pelo fato de ser mulher e negra.

Jaciana Melquiades confecciona as bonecas que passarão a ser vendidas em uma pequena loja física no Centro do Rio
Jaciana Melquiades confecciona as bonecas que passarão a ser vendidas em uma pequena loja física no Centro do Rio Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Dandara pegou em armas pela libertação de seu povo, e, de acordo com os poucos registros históricos, teria morrido em 1694. Relatos dão conta de que ela teria se jogado em um abismo, numa decisão extrema para não se entregar às forças militares que haviam tomado o Quilombo dos Palmares, onde ela havia liderado 30 mil pessoas homens e mulheres.— A Dandara é um nome expressivo para a comunidade negra. Por isso a escolhemos. E ainda é ótimo porque assim aproveitamos para ensinar as crianças sobre a História negra.
Loja também para brancas e para meninos
Jaciana ressalta que a ideia da loja não é atender exclusivamente meninas negras. Na visão dela, é fundamental que meninas brancas tenham acesso também a bonecas de cor diferente da delas, para que valorizem desde cedo a diversidade no mundo. Ela explica que também é importante que meninos, como seu filho, possam usar essas bonecas e outros brinquedos como referência.
— A gente trabalha pensando na autoestima das meninas negras, mas, para isso acontecer, é importante que os meninos, brancos ou negros, entendam uma série de aspectos para viverem em harmonia e igualdade — afirma ela. — Uma menina branca da periferia consegue ver uma executiva na novela que se parece com ela de alguma forma e, assim, sentir-se estimulada. Quem é negro tem poucas referências, e às vezes, fica estagnado porque não recebe qualquer incentivo ao seu redor. Resumindo: eu faço bonecas negras porque eu preciso que a menina negra seja representada, mas também preciso que as crianças brancas não pensem que um negro só pode ser empregado.
Embora o grande destaque da loja sejam as bonecas, serão vendidos também outros brinquedos, significativa parte deles educativos. Jaciana chama atenção para o conceito de livro-brinquedo: trata-se de livros de tecido, feitos artesanalmente, com itens com os quais a criança pode interagir. Alguns vêm com tintas para que a menina ou o menino pintem o rosto seguindo as pinturas sugeridas pelo personagem da história. Outros vêm com uma boneca de turbante, para que a criança aprenda sobre roupas étnicas, por exemplo.
— Alguns personagens dos livros-brinquedos que eu crio têm os traços inspirados no meu filho. O primeiro lote que eu abri e mostrei para o Matias foi emocionante. Os olhos dele brilharam e ele logo perguntou "Mãe, onde eu estou?", porque o personagem aparecia num fundo do Egito e ele queria saber que lugar era aquele — recorda Jaciana.
O projeto da loja foi possível graças ao Instituto Ekloos, uma aceleradora fundada pela ex-executiva da Microsoft Andréa Gomides que ajuda ONGs e empreendimentos a terem impacto social positivo.
— Atualmente, aceleramos 108 organizações semelhantes à Era Uma Vez o Mundo, sendo 54% das iniciativas lideradas por negros e 57% por mulheres — afirma Andréa. — Ao comprar uma boneca da Era Uma Vez o Mundo, não só estamos desenvolvendo o empreendedorismo, mas levando bonecas negras para as casas que hoje, em sua maioria, só possuem bonecas brancas, pois as negras só representam 7% do mercado.
A loja fica em uma galeria na Rua dos Andradas, 22, Centro do Rio. Ela funciona de segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 10h às 14h. O preço das bonecas varia entre R$ 65 e R$ 80.

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